SOJA, CULTIVAR E TRANSGENIA: DISCUSSÕES JURÍDICAS
MONSOY 8349 RR e FT 1154 RR: as duas representam sementes de soja (glycine max), porém, cada uma um conjunto de características e elementos distintivos de desenvolvimento vegetal; e cada uma possui proprietários distintos, respectivamente, Monsanto Company e FT Sementes. Em outras palavras: são cultivares de soja.
A definição legal de cultivar é dada pela Lei nº. 9.456/1997 (proteção de cultivares), na forma do art. 3, inciso IV:
IV – cultivar: a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através das gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos;
Agora, retorna-se, mais uma vez, às cultivares dadas de exemplo. Apesar de possuírem características significativamente distintas (por serem cultivares diferentes), elas possuem algo em comum, além de, certamente, serem sementes de soja (glycine max): as duas possuem tecnologia RR (Roundup Ready).
A Roundup Ready, por sua vez, não se trata de uma característica de desenvolvimento vegetal diferente, que influencia no ciclo da soja ou uma determinada condição engalhamento/arquitetura da planta, mas de um processo específico de transgenia, cuja inserção e modificação no gene CP4 EPSPS, gera um organismo geneticamente modificado (OGM) de soja (glycine max) que possui tolerância ao uso de um herbicida (produto químico utilizado para matar plantas daninhas) denominado glifosato [N-(fosfonometil)glicina], o que implica, ao produtor rural, uma opção de controle maior das plantas invasoras a um custo significativamente menor.
Nessa toada, a detentora dessa tecnologia é a Monsanto Company, cujos fornecedores apenas podem utilizá-la mediante concessão de licença para exploração. Assim, partindo-se do exemplo inicial das cultivares de soja, a FT Sementes, para comercialização de sua cultivar FT 1154 RR, firmou contrato de licença com a Monsanto Company com fixação de royalties.
Portanto, não se fala mais em cultivar protegida pela Lei nº. 9.456/1997, mas da proteção conferida às patentes, na forma da Lei nº. 9.279/1996, e coordenado pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), a saber:
Art. 18. Não são patenteáveis: III – o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade – novidade, atividade inventiva e aplicação industrial – previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais.
Essa relação foi posta em análise quando do julgamento do Recurso Especial nº. 1.610.728/RS, em incidente de assunção de competência, com relatoria da Ministra Nancy Andrighi:
Patentes e proteção de cultivares, como visto, são diferentes espécies de direitos de propriedade intelectual, que objetivam proteger bens intangíveis distintos.
Continua:
A marcante distinção existente entre um regime e outro compreende desde o objeto protegido – novas cultivares, pela LPC; processos e produtos biotecnológicos (microrganismos transgênicos), pela LPI […]
Desta forma, essa distinção apresentada dos fatos e aplicações das leis foi extremamente impactante, já que se buscava aplicar a exceção do art. 10 da Lei nº. 9.456/97 à tecnologia RR para a não aplicação dos royalties, o que envolve valores financeiros extremamente altos, in verbis:
Art. 10. Não fere o direito de propriedade sobre a cultivar protegida aquele que: I – reserva e planta sementes para uso próprio, em seu estabelecimento ou em estabelecimento de terceiros cuja posse detenha; II – usa ou vende como alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos; III – utiliza a cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na pesquisa científica; IV – sendo pequeno produtor rural, multiplica sementes, para doação ou troca, exclusivamente para outros pequenos produtores rurais, no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores rurais, conduzidos por órgãos públicos ou organizações não-governamentais, autorizados pelo Poder Público. […]
Portanto, para efeito do art. 947 do Código de Processo Civil foi firmada a tese de que as limitações ao direito de propriedade intelectual constantes no art. 10 da Lei de Proteção de Cultivares (aplicáveis apenas aos proprietários de Certificados de Proteção de Cultivares) “não são oponíveis aos detentores de patentes de produto e/ou processos relacionados à transgenia cuja tecnologia esteja presente no material reprodutivo de variedades vegetais3”, e, por conseguinte, a natureza distinta das patentes/tecnologias transgênicas e das cultivares.
Abre-se parêntese para registrar que existe Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, sob o n.º 4.234, ajuizada em 22/04/2009, que discute os arts. 230 e 231 da Lei n.º 9.279/96 (depósito de patentes estrangeiras), pendente de julgamento.
1 Portfólio Monsanto Sementes, Monsoy, 2021. Disponível em < https://www.monsoy.com.br/pt-br/variedades/variedades/all-products/all-product- details.html/m8349ipro.html>. Acesso em: 01 de maio de 2021.
2 Portfólio FT Sementes, FT, 2021. Disponível em <https://www.ftsementes.com.br/?page_id=1357>. Acesso em: 01 de maio de 2021.
3 STJ, 2016/0171099-9, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe: 14/10/2019